quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Humberto Maturana e o Pensamento Sistêmico


Por Humberto Mariotti *

Pouco antes de sua morte, em 1980, o antropólogo inglês Gregory Bateson, um dos criadores do que hoje conhecemos como pensamento sistêmico, foi questionado sobre quem continuaria a sua obra. Respondeu: “No Chile há um pesquisador chamado Humberto Maturana. Ele é a pessoa a quem vocês se referem”.

Entre as várias vertentes que deram origem ao atual pensamento sistêmico inclui-se a cibernética ou ciência dos sistemas de controle. A cibernética surgiu nos EUA e se consolidou durante uma série de conferências patrocinadas pela Fundação Josiah Macy Jr. A partir de 1942, pesquisadores de várias procedências e diferentes áreas de interesse começaram a se reunir com regularidade. Esses eventos congregaram, entre outros, o fisiologista Warren McCulloch (de quem Maturana foi aluno), o psicólogo social Kurt Lewin, os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead, o matemático Norbert Wiener e o físico Heinz von Foerster.

Há vários livros de Maturana traduzidos no Brasil. Dois merecem destaque, por sua relação com o pensamento sistêmico: "A árvore do conhecimento", (escrito com Francisco Varela) e "Amar e brincar", (escrito com a psicóloga alemã Gerda Verden-Zöller). São obras importantes, nas quais Maturana e seus co-autores introduzem a visão sistêmica em especial na biologia, na psicologia social e na antropologia.

A abordagem sistêmica deu a Maturana subsídios para que ele elaborasse o que considero o seu conceito fundamental: a autopoiese.

Poiesis é um termo grego que significa produção. Autopoiese quer dizer autoprodução. A palavra surgiu pela primeira vez na literatura internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe para definir os seres vivos como sistemas que produzem a si mesmos de modo incessante. São sistemas autopoiéticos por definição, porque sempre recompõem seus componentes desgastados. Assim, um sistema autopoiético é ao mesmo tempo produtor e produto.

Em termos filosóficos, o conceito de autoprodução já havia aparecido no século 17 na obra do filósofo holandês Baruch de Espinosa. No século 18 ela reapareceu no livro "Crítica da faculdade do juízo", do pensador alemão Immanuel Kant, que se refere ao organismo como “um todo que se autoproduz”.

No entanto, mesmo antes de Kant e Espinosa já existia a idéia de autoprodução, esboçada por Aristóteles e sugerida pelos filósofos estóicos e por Sêneca. Plotino, expoente da filosofia neoplatônica – período que encerrou a filosofia grega antiga – já havia falado em autocausalidade no sentido de autoprodução.

Tudo isso visto, se é certo que a idéia de que o produtor é ao mesmo tempo o produto já existia antes dele, é também correto que Maturana a desenvolveu, deu-lhe o nome de autopoiese e a reformulou, sobretudo em termos biológicos. Nesse sentido, ele é um pensador fundamental.

Para Maturana, o termo "autopoiese" traduz o "centro da dinâmica constitutiva dos seres vivos". Para exercê-la, estes precisam de recursos do ambiente. Portanto, são sistemas ao mesmo tempo autônomos e dependentes. Maturana e Varela utilizaram uma metáfora didática para falar dos sistemas autopoiéticos. Para eles, tais sistemas são máquinas que produzem a si próprias. Nenhuma outra espécie de máquina é capaz de fazer isso, pois todas elas produzem sempre algo diferente de si mesmas.

Segundo esses autores, os seres vivos são determinados por sua estrutura. Assim, o que percebemos e o que nos acontece num determinado instante depende de nossa estrutura nesse instante. A estrutura de um sistema é a forma como seus componentes interligados interagem sem que mude a organização. Vejamos um exemplo, referente a um sistema não-vivo — uma mesa. Ela pode ter seus pés encurtados, alongados ou recolocados e seu tampo modificado de retangular para circular sem que isso interfira na sua configuração. O sistema continuará a ser identificado como mesa. Manterá a sua organização apesar dessas modificações estruturais.

No entanto, se desarticularmos os pés e o tampo e os afastarmos, o sistema se desorganizará e deixará de ser uma mesa. Da mesma maneira, num sistema vivo a estrutura muda o tempo todo, o que mostra que ele se adapta às modificações do ambiente, também contínuas. Mas a perda da articulação levaria à desorganização e, portanto, à morte. O mundo em que vivemos é o que construímos com base em nossas percepções. É a nossa estrutura que permite essas percepções. Nosso mundo é a nossa visão de mundo. Se a realidade que percebemos depende da nossa estrutura, existem tantas realidades quantas pessoas percebedoras. É o que diz um antigo provérbio árabe: “Não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos”.

Maturana e Varela observam que o sistema vivo e o ambiente se modificam de forma congruente. Na sua metáfora, o pé sempre se ajusta ao sapato e vice-versa. É uma boa maneira de dizer que o meio produz mudanças na estrutura dos sistemas, que por sua vez agem sobre ele, alterando-o numa relação circular. Quando um organismo influencia outro, este replica influindo sobre o primeiro. Desenvolve uma conduta compensatória. O primeiro organismo, por sua vez, dá a tréplica e volta a influenciar o segundo, que por seu turno mais uma vez retruca e assim por diante.

Sempre que um sistema influencia outro, este passa por uma mudança de estrutura. Ao retrucar, o influenciado dá ao primeiro uma interpretação de como percebeu essa mudança. Há, portanto, um diálogo, no qual o comportamento de cada organismo corresponde a uma descrição do comportamento do outro. Cada um "conta" ao outro como recebeu e interpretou a sua ação.

De um modo geral, as principais idéias de Maturana e sua contribuição ao pensamento sistêmico podem ser assim resumidas:

a) enquanto não entendermos o caráter sistêmico da célula não conseguiremos compreender os organismos;

b) a autopoiese define com clareza os fenômenos biológicos;

c) os fenômenos sociais podem ser considerados biológicos, porque a sociedade é formada por seres vivos;

d) a noção de que os sistemas são determinados por sua estrutura é de fundamental importância para muitas áreas da atividade humana.

Além das já citadas, as aplicações dessas idéias são extensas. Englobam áreas como o management, a psicoterapia (em especial a familiar), a área jurídica e as ciências cognitivas, entre muitas outras.

* Humberto Mariotti - Professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor em desenvolvimento pessoal e organizacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da Complexidade da Business School São Paulo.

Fonte: http://www.fnq.org.br/site/ItemID=1072/366/default.aspx

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