O atrofiar das consciências
Por Nelson Hoineff
3/11/2006
Dos muitos débitos que a mídia tem com a sociedade, o maior é o da banalização da notícia. Ao banalizar a informação, a mídia rejeita sua capacidade de fazer com que cada uma das pessoas que atinge, muito especialmente as milhões de pessoas que confundem reprodução com representação do real, tornem-se agentes de transformação da sociedade. Tome-se a televisão como exemplo. O meio não permanecerá massificado por muito tempo. Mas se as incontáveis horas gastas até agora com os grotescos embustes jornalísticos e ficcionais que invadem todos os dias os lares de milhões de espectadores, se esse tempo fosse aplicado na informação de todas essas pessoas, o mundo seria diferente (e a própria televisão seria certamente mais lucrativa).
A mídia tem falhado grosseiramente, entre outras coisas, em despertar a consciência ecológica das pessoas. É uma questão supra-partidária, praticamente consensual. E no entanto a população da Terra continua dilapidando todos os dias a qualidade de vida na sua vizinhança, inviabilizando a possibilidade de vida futura no planeta. O aquecimento global é a mais recente fonte de preocupação ambiental em todo o mundo e o estarrecedor é que a consciência em torno do problema tenha se formado tão recentemente.
A entrevista de James Lovelock nas páginas amarelas de Veja (data de capa 25 de outubro de 2006) deveria ser de leitura obrigatória, para ficar numa escala bastante acessível. Para o cientista inglês, já em 2040 a Terra se tornará um planeta praticamente sem condições de abrigar vida humana. Cerca de 80% da humanidade desaparecerá antes do final deste século e os 20% restantes protagonizarão formidáveis correntes migratórias para o Ártico. Alguns cientistas acreditam que Lovelock exagera. Ninguém o acusa de estar inventando.
A desatenção da mídia à sua obrigação de informar tem colaborado para que a praia ou o igarapé que estava ao lado desapareçam como por encanto num par de anos. Pode-se visualizar a olho nu o que estamos fazendo com nosso planeta. A mesma negligência midiática permitiu que o meio-ambiente se tornasse um atraente produto de venda de políticos inescrupulosos e parasitas afins. Em época de eleições, é assustador observar a quantidade de oportunistas que se apresentam como defensores do verde, quando o único verde com que se preocupam é a nota de cem dólares.
Um filme como Uma Verdade Inconveniente mostra a possibilidade da consistência de um discurso ambientalista global. Traz dados e conclusões – muitas delas quase idênticas às de Lovelock - como no efetivo índice de aumento da temperatura do planeta até o final do século, de 6 graus em média, ou os efeitos do rápido incremento da densidade populacional (a população da Terra cresceu de 2 bilhões para 6 bilhões no espaço de uma geração). A essência do que é dito ali, repicada pelo espaço no qual a mídia constrói a consciência das pessoas, seria o bastante para tornar esse mundo mais habitável.
Uma Verdade Inconveniente é a documentação da itinerância internacional de uma palestra sobre o tema, conduzida com grande habilidade por Al Gore, o democrata que por pouco não ganhou as eleições para presidente dos EUA. Ele foi derrotado por Bush num resultado que envolveu várias recontagens de votos na Florida e até hoje é cercado de dúvidas.
Gore faz essa palestra há seis anos. Levanta questões essenciais sobre a produção de combustíveis fósseis e o rápido desaparecimento de geleiras ou a ocorrência de catástrofes climáticas. A extensa pesquisa que mostra lança sobre sua platéia uma extraordinária coleção de dados sobre os perigos do aquecimento global e o que poderia ser feito para reduzir o seu impacto.
Se o formato de sua apresentação é admirável, o mesmo não se pode dizer do formato do filme que a documenta. A relevância da palestra não impede que a qualquer momento o documentário possa ser tomado como um institucional sobre o ambientalista - e ainda assim o político – onde não faltam considerações dramáticas sobre assuntos como o acidente que vitimou seu filho ou a doença que matou sua mulher, convenientemente embalados por referências sonoras que cairiam como uma luva na novela das oito.
Essa embalagem não colabora para dar relevo à densidade do que o palestrante está mostrando. Pelo contrário, abre os holofotes sobre a credibilidade das intenções que acompanham o discurso de qualquer político, muito especialmente um quase presidente dos Estados Unidos. Ali estão os indefectíveis primeiro planos, o preto & branco e o slow motion que acompanham todos os filmetes de propaganda política produzidos nos EUA e no mundo.
O calor dos argumentos de Al Gore corre o perigo de se derreter nesse formato, como as geleiras que se esfacelam no Ártico ou na Groenlândia. Mas a pertinência do que está sendo dito não se dissolve. Uma Verdade Inconveniente faz timidamente pela sobrevivência do planeta o que a mídia poderia fazer numa escala gigantesca, de que nenhum filme é capaz. Desperta a consciência para a iminência da extinção da raça humana, que até bem recentemente os cientistas só esperavam para os próximos milhares de anos. Mostra que a qualidade de nossa vida no planeta vai piorar na semana que vem, e no próximo ano, e todos os dias. Essa não é uma invenção do protagonista – é um consenso científico.
A palestra de Al Gore faz de cada um de nós um personagem de O Senhor dos Anéis. Quem conseguir se abstrair do natural voto de desconfiança que deve ser dado a qualquer político, dificilmente vai dormir sem se perguntar o que pode fazer para salvar o planeta.
Fonte: http://www.criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?artigo=1105
domingo, 8 de fevereiro de 2009
Uma verdade inconveniente
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